Ernane Galvêas: In Memoriam

Ernane Galvêas: In Memoriam

Rubens Penha Cysne

01/07/2022

Ernane Galvêas. Para aqueles que tiveram o privilégio de conhecê-lo de perto, desfrutando do seu sorriso, de sua companhia e de sua estima, um grande e inesquecível amigo. Amigo de verdade. De qualquer hora. Daqueles cujo trabalho pela felicidade do próximo se dá seja na sua presença ou ausência. Que oferecem em bandeja de prata pelo menos uma boa piada ao final de cada dia. Que, nos dias mais difíceis, apelam à memória para contar histórias de vida e de superação.

Falo das amizades que nascem fortuitamente de circunstâncias comuns às pessoas. Das que se nutrem, dia a dia, da admiração e do aprendizado recíprocos. Da agradável conversa que costuma acompanhar o exercício desinteressado do raciocínio que faz ver a vida com a devida humildade.

Dotado de inteligência invejável, ora explicitada pelo humor fino e elegante, ora pela capacidade de ensinar e de persuadir, fazia-o como requer tal ofício. Com modéstia na forma, profundidade na visão e simplicidade na comunicação. Conseguia passar o sentido da indução através do olhar com o qual defrontava o infinito. O exercício da dedução, fazia-o e transmitia-o simplesmente através do sorriso. Com paciência, trabalhava as mentes tanto dos que sabiam que não sabiam quanto dos que não sabiam que não sabiam.

Ernane Galvêas sempre me pareceu ter uma percepção exata do seu tempo e espaço. Conseguia enxergar de longa distância, aproximando-se para olhar os fatos e distanciando-se para contextualizá-los histórica e geograficamente. Da inspiração oriunda desse caminhar cíclico - do vir dos fatos ao ir das suas ideias - derivava facilidade no entendimento, legitimidade na opinião e autenticidade no exercício da modéstia suprema, aquela possível apenas àqueles que já conhecem bem a si mesmos.

A junção da profundidade analítica que advém da experiência à comunicação leve que se nutre do humor foram-lhe utensílios colocados com grande generosidade pela vida.

Galvêas era consciente da felicidade obtenível por aqueles que tentam incessantemente ser de ajuda a todos que o cercam. Lembro-me de quando, certa vez, me procurou. Conjugava seus mais de noventa anos com o entusiasmo de vida que costuma acompanhar apenas as idades nas quais os valores não espirituais teimam ainda em superar os valores espirituais. Era para me passar um prospecto sobre um novo modelo de negócios associado a seminários e aulas que, imaginou ele, poderia ser-me útil. E foi. Fez questão de me explicar sua ideia de como operacionalizá-lo, detalhe a detalhe.

Ernane Galvêas fica em nossa memória também pelo amor e dedicação ilimitados à vida e ao trabalho. Pelo seu amor ao Brasil. Pela sua persistência ininterrupta na tentativa de visualizar e materializar para nosso país o caminho do crescimento, da harmonia e do bem-estar.

Por vezes, foram os alunos da EPGE/FGV os agraciados com seu rápido raciocínio e escorreito verbo. Lembro-me, aqui, da formatura dos cursos de Mestrado e Doutorado da Escola, ocorrida em 2016, na qual ele foi homenageado. Os alunos que não o conheciam, inicialmente apáticos pela visão de alguém que estava longe de pertencer à sua geração, foram pouco a pouco, comentário seu a comentário seu, riso nas faces a riso nas faces, abrindo-se em entendimentos e admiração. Posteriormente, em elogios.

Em poucos minutos de exposição, percorreu fatos relativos à sua vida pública, que se confundiam com a própria história do Brasil. Iniciou contando como o destino lhe reservara, em 1942, então como funcionário do Banco do Brasil, a tarefa de explicar para diferentes públicos a reforma monetária promulgada naquele ano. Instituíra-se o cruzeiro como unidade monetária, com equivalência a um mil Réis. Haviam retirado três zeros da moeda. Galvêas precisou, em particular, explicar àqueles que se acharam lesados que a reforma nada modificara em termos de poder de compra.

Enumerou vários episódios de suas passagens por praticamente todos os governos brasileiros que se seguiram. Iniciou com o governo Getúlio Vargas, em 1942, e terminou com o governo João Figueiredo, em 1985. Surpreendeu a todos os presentes com sua memória prodigiosa sobre fatos, nomes e datas. A palestra foi posteriormente publicada pela Editora Topbooks no livro “As Crises da Minha Vida”.

Lembrou, com pormenores, as amizades construídas ao longo do tempo com Walther Moreira Salles, Marcílio Marques Moreira, Miguel Calmon, San Tiago Dantas, Nei Galvão, Otávio Gouveia de Bulhões, Mário Henrique Simonsen, José Luiz Bulhões Pedreira, Arnold Wald, Roberto Campos, Antonio Delfim Netto, Nestor Jost, João Paulo dos Reis Velloso, Marcos Viana, Simões Lopes, Bernardo Cabral, Arnaldo Niskier, Jose Luiz Miranda, Carlos Thadeu de Freitas, Carlos Eduardo de Freitas, Sergio Quintella, Luiz Roberto Cunha e Antonio de Oliveira Santos, apenas alguns dentre os vários nomes citados, conhecidos e reconhecidos da economia e das letras jurídicas nacionais.

Vale a pena ler uma parte da palestra do Ministro Galvêas:

“Num certo dia estava despachando com o Presidente Figueiredo e começamos a falar da crise. O Presidente Figueiredo estava nervoso e me disse: - “Galvêas, estou achando que o diabo soltou os três cavaleiros do Apocalipse contra o meu Governo”. E invocando mais uma figura bíblica, acrescentou: “Só falta uma praga de gafanhotos”. Ô presidente, não é tanto assim, disse eu. Estamos administrando, estamos saindo da crise, devagar, mas estamos saindo. E aí terminou o despacho.

Saí do gabinete do Presidente, peguei meu carro na garagem e disse ao motorista: - Maurício, você tem um jornal aí? Respondeu: - “Tem um jornal aqui, de Cuiabá”. Me empresta aí, disse eu. Peguei o jornal e na primeira página: “Onda de gafanhoto da Bolívia invade Mato Grosso”. Eu digo: - Maurício, pare o carro. Eu tenho que voltar, esqueci uma coisa no Planalto. Voltei lá, com o jornal debaixo do braço, falei com o Major Dourado, que já ia dando entrada a um grupo de diplomatas. - “Dourado, disse eu, me dá 30 segundos porque eu tenho que entregar esse jornal ao Presidente.” Entrei lá e disse: - “Presidente, não falta mais nada.”

Ocorrera naquela palestra, perceberam alguns, uma transição muito sutil do conceito inicial que tiveram os alunos, apenas visual e informacional, pelo conceito derivado da beleza da palavra que conta histórias. A palavra que conta histórias só costuma perder em facilidade na comunicação para a palavra que traz música. Soube depois, através de Sergio Quintella, que Galvêas dominava as duas[1].

Durante sua palestra, aconselhamentos sobre como servir à sua família, à sua comunidade e à sua pátria, permeados de ideias firmes e ações fortes, não se furtou a enumerá-los.

Aqueles alunos conviveram, por alguns momentos, com um livro humano da história do Brasil. Uma aula dada com a clareza analítica com a qual o destino dota apenas as vidas bem vividas. Com a empatia daqueles que viveram muito e observaram ainda muito mais. Conseguira o Ministro em sua palestra, com clareza e facilidade, dar à cor cinza dos fatos econômicos laços azuis de poesia e cores serenas de fina ironia.

Ao achar-se ouro de aluvião, é preciso perceber que se achou ouro, pensei comigo mesmo sobre aquele momento. Antes que este se perca nos vales dos rios.

Nasceu a partir dessa palestra a ideia, concebida por iniciativa do Presidente da Fundação Getulio Vargas, Carlos Ivan Simonsen Leal, de homenagear o Ministro Galvêas com a instituição de um prêmio, que levasse o seu nome, para os alunos de economia da Escola. O ministro, gentilmente, aceitou a ideia, tendo sido, a partir daí, instituído o “Prêmio Ernane Galvêas”, formalmente lançado pela EPGE em 2021.

Ernane Galvêas vivia a vida como se estivesse a surfar sobre uma poesia, seja sobre ondas de maré mansa ou sobre ondas de tempestade. Como poeta, poucos sabem, lançou o livro “Os Rios da Minha Vida”, publicado em 2015 pela Topbooks.

Vejamos duas belas passagens desse livro. Inicialmente, o capítulo “Vida Sem Rumo” (página 98):

Eu só queria que você soubesse

o que eu sinto

e que eu não minto.

A saudade que tenho e que não finda

E a lembrança do amor, maior ainda.

Fico lembrando o passado

Tendo você ao meu lado

Ser amado, ser feliz

Isso foi tudo que eu quis.

 

E porque ando adoidado

Ao sabor da ventania

Corre meu barco, sonado

Seja noite, seja dia

 

Em que porto não sei vou atracar.

Se estou indo depressa ou devagar

Eta vida mais burra essa minha,

Ser um pobre plebeu, com uma rainha,

Se essa moça me acena, vou com ela

Reconheço outra vez que a vida é dela.

 

 E, na página 98, “Caminhada”:

Para onde vais?

Não sei.

E quando voltas?

Jamais.

E por que tantas revoltas?

Porque estou certo que errei.

Vais deixar tudo para trás?

Não sei.

 

As coisas não são como pensei.

Talvez vá atrás da vida, de uma ilusão perdida.

E como vais? Vais com alguém?

Não. Vou nas asas da ilusão. Como qualquer passarinho

Que precisa de carinho

Do aconchego do seu ninho.

 

Quando li de improviso esses dois versos na cerimônia de formatura da EPGE, o Ministro rebateu, com sua irreverência habitual: “Agora vocês já sabem por que não segui a carreira de poeta – teria fracassado. Tive que estudar economia”.

Assim era Ernane Galvêas. De uma modéstia e rapidez intelectual capazes de constantemente alegrar o espírito e impressionar aqueles que o conheciam. Assim será sempre, em nossa memória, o eterno e insuperável Ministro Ernane Galvêas.

 

Repercussão na Mídia:

 


[1]  Segundo relato de Sergio Quintella feito no livro supracitado “As Crises da Minha Vida”, Galvêas gostava também de cantar, tendo apresentado certa vez ao violão, para um grupo de amigos positivamente surpresos, durante viagem ao exterior, seu repertório de cantorias preferidas.